Um problema de linhas (imaginárias)
- C. Rebelo

- há 5 dias
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Atualizado: há 3 dias
Há uma razão pela qual são os canalizadores a tratar das canalizações, os veterinários a tratar de animais, e os pilotos a pilotar aviões. Nesta lógica, quiseram as altas instituições do futebol mundial escolher árbitros para aplicar geometria descritiva em frames obtidos por câmeras de segurança montadas em postes de iluminação.
Estamos em 2025, dizem-me. No filme Regresso ao Futuro 2, os protagonistas iam até 2015, onde havia carros voadores, casacos que se secavam sozinhos, tratamentos de rejuvenescimento rápido onde retirávamos a pele velha como se fosse uma máscara, máquinas de venda ambulante com comida criada no momento, atacadores que se apertavam sozinhos, skates voadores, enfim… toda uma miríade de invenções tecnológicas que até ver, ainda não tivemos acesso. Contudo, as mentes mais brilhantes do nosso século olharam para isto e decidiram que em termos de avanço tecnológico, o melhor era mesmo criarem bonecas sexuais munidas de inteligência artificial que, como bónus, preparam e servem bebidas.
No que a futebol diz respeito, a tecnologia viria supostamente ajudar a tornar as decisões menos subjectivas. Com a prática, talvez até mais rápidas. Conceptualmente, a intenção era boa. O problema está na implementação. E sejamos francos, na aptidão de quem usa a tecnologia. Fez-me lembrar uma história.
Em 2012 fui convidado a falar numa conferência onde 3-4 médicos de uma instituição norte-americana estavam excitadíssimos para falar do uso de câmeras termográficas para detectar lesões crónicas. As câmeras termográficas são, trocado por miúdos, dispositivos que criam imagens coloridas mostrando diferenças de temperatura através da detecção de radiação térmica, permitindo-nos «ver» o calor em diferentes objetos ou superfícies. Na altura, a termografia era um tema "sexy" em conferências deste género, e a apresentação tinha atraído um número surpreendente de profissionais da área da saúde e cientistas, interessados em ouvir mais sobre isto.
E de facto parecia que se tinha encontrado finalmente uma ferramenta extraordinária no diagnóstico médico, com potencial para aplicações que ainda ninguém tinha equacionado. O entusiasmo era palpável, e houve várias perguntas da audiência que estava naturalmente curiosa e interessada neste tema. Eis que lá no fundo, um senhor em idade de reforma, pede o microfone para fazer uma pergunta:
"Como é que vocês incorporaram o índice de luz reflectida pelas estruturas circundantes e pelos próprios pacientes na vossa análise estatística?". Perante o silêncio dos médicos que faziam a apresentação, o senhor continuou: "É porque isso vai afectar os vosssos resultados, tal como a calibração. Como calibraram o equipamento? Fizeram-no antes de cada aplicação? E que equipamento usaram para detectar a humidade relativa? Era um equipamento validado cientificamente? E como incoroporaram esse valor nos vossos cálculos? Estabeleceram areas under the curve para determinados píxeis? Que critérios usaram para excluir outliers, e para determinar número de píxeis necessários em áreas afectadas com a condição médica que procuravam? Como determinaram padrões termográficos de normalidade para as lesões? As margens de erro são coerentes?"
E os médicos, que vinham de uma instituição relativamente prestigiada, olharam uns para os outros, esboçaram uma resposta, para ficaram depois em silêncio com uma expressão de desalento. O senhor em causa era o "pai" da termografia aplicada ao diagnóstico terapêutico. Tinha escrito duas "bíblias" na matéria. Os médicos estavam claramente a nadar fora de pé. E o senhor, que claramente vinha com um objectivo em mente, mostrou sem grande dificuldade o que já todos começavam a entender: isto não é assim tão simples.
O problema era evidente: os médicos tinham em seu poder uma ferramenta incrível, com resultados que todos queriam ver, mas a excitação de demonstrar o que conseguiam fazer com esta tecnologia levou a que a sua implementação dosse defeituosa. Muito também por culpa dos intervenientes no processo, que por perceberem parte da equação (medicina), excluíram do processo outras valências que são essenciais na averiguação do problema. Os artigos científicos passaram a ter uma revisão mais rigorosa, porque a metodologia usada até chegar a estes resultados foi imprecisa e, consequentemente, as conclusões apresentadas não tinham validade científica. Algo que, por analogia, se pode aplicar ao protocolo para apurar o fora-de-jogo no futebol moderno.
As câmeras usadas para apurar o fora-de-jogo têm, por norma, 30 fps. Ou seja, temos frames a cada 33.33 milésimos de segundo. Diz-me o Google que a média de velocidade da bola num passe é 100 km/h (aparentemente, o remate mais rápido de sempre registou uma velocidade de 211 km/h). Ou seja, num passe feito a 100 km/h, a bola avança 92.6 cm a cada 33.33 milésimos de segundo. Por outras palavras, a bola pode avançar quase 1 metro entre 2 frames. Diz igualmente o Google que a velocidade média de um jogador de futebol é 17 km/h. Ou seja, fazendo os mesmos cálculos, um jogador em velocidade média (e já nem estou a considerar um jogador em sprint) pode avançar 15.74 cm entre 2 frames. O que quer isto dizer na prática?

Quer isto dizer que é cientificamente impossível determinar, em bola corrida, um fora-de-jogo de 3 cm. Imaginem então um fora-de-jogo de 1 cm! Mesmo com a colocação certa de linhas, com o melhor ângulo, e com os melhores profissionais atrás dos ecrãs, simplesmente não temos competência na aplicação correcta da tecnologia para determinar, com este grau de exactidão, o fora-de-jogo.

A não ser que se melhore consideravelmente as câmeras usadas jogos, que se coloquem microchips na bola e nas chuteiras dos jogadores para determinar com mais rigor a geolocalização exacta dos jogadores e bola no momento preciso do passe, e que se alterem as regras do fora-de-jogo para só contar a posição dos pés, não antevejo que este problema se resolva nos próximos tempos. Até lá, estão a atirar areia para os olhos dos adeptos. O sistema actual, com tudo o que está envolvido na determinação do fora-de-jogo, é falível. E portanto o mais correcto é perceberem que apesar de terem uma tecnologia super catita que querem mostrar ao mundo, têm de aceitar uma margem de erro para o fora-de-jogo (os ingleses deixam o lance prosseguir se as linhas do atacante e do defensor se tocarem, por exemplo).
Sempre fui defensor do VAR, mas começa a tornar-se muito complicado defender a paragem de uma partida por vários minutos para brindarem os adeptos do futebol com más decisões. Isto sim, é matar o jogo.




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