O técnico Bruno Miguel Silva do Nascimento, que adotou o sobrenome Lage em homenagem ao seu pai, Fernando, tinha uma enorme bagunça para arrumar quando aceitou a missão de assumir o elenco principal do maior clube de Portugal. O Benfica vinha de surpreendente derrota de 2 a 0 para o Portimonense, estava a sete pontos do líder Porto em plena 15ª rodada da Primeira Liga e corria sério risco de ficar fora da próxima edição da Uefa Champions League. Além disso, o legado deixado pelo antecessor, Rui Vitória, era deprimente: futebol de doer na vista, jogadores desmotivados e torcedores irritados. E a tabela do restante da temporada reservava partidas muito difíceis para os Encarnados nos Açores, em Guimarães, em Moreira de Cónegos, em Braga e na Vila do Conde, clássico no Estádio do Dragão e dérbi no Estádio José Alvalade. A missão, evidentemente, era complicadíssima. Mas, como a vida nos ensina, as dificuldades fazem parte da história dos campeões - e o futebol é uma extensão da vida.
A verdade é que o alto escalão do Sport Lisboa e Benfica, na metade da temporada, não ganhou somente um técnico, mas também um líder, cujas virtudes já eram conhecidas pelos rapazes do Benfica B, frequentadores da parte de cima da Segunda Liga. O depoimento do mister na entrevista coletiva após o triunfo de 4 a 2 contra o Rio Ave, no Estádio da Luz, pela 16ª jornada da Liga, em 6 de janeiro, diz muito sobre quem ele é e sobre quem seriam os seus comandados de lá para cá. "Quando fui apresentado, senti no olhar dos jogadores que eu seria o líder deles. É algo que acontece de forma muito natural. Neste momento de transição de trabalho, é importante nos sentirmos confortáveis e passarmos uma imagem de entrega e de motivação. É muito importante reconquistar o público", declarou Lage naquela ocasião.
Escrevia-se ali a primeira página de uma história gloriosa. Os jogadores demonstraram uma impressionante saúde mental para buscar os três pontos depois de saírem perdendo por 2 a 0, vale recordar. Mesmo com apenas dois dias de contato entre o novo técnico e o plantel, as perspectivas já eram positivas. Não à toa o então interino foi efetivado no cargo após a vitória de 2 a 0 frente ao Santa Clara, no Arquipélago dos Açores, contrariando rumores da imprensa, que iam de Jorge Jesus a José Mourinho. A diretoria encontrou em casa a solução para os problemas que tanto atormentavam a nação benfiquista - boa parte desses problemas foram provocados pelos próprios cartolas, diga-se.
Desde a mudança no comando à beira do campo, o SLB ganhou outra cara. Passou de um 4-3-3 focado em investidas nas laterais e passes longos para um 4-4-2 mais dinâmico e muito agradável de se ver. Não existia mais aquele time que apostava exaustivamente em chutões, abusava dos chuveirinhos na área, deixava espaços e era facilmente explorado pelos oponentes, dependia da individualidade dos seus principais jogadores, retraía-se até mesmo contra adversários tecnicamente inferiores e se apavorava quando sofria gol. A mesma equipe passou a tocar a pelota de pé em pé, controlar as ações no meio-campo, jogar com intensidade, não se intimidar em momento algum - nem mesmo ao ser vazado - e a marcar em alta pressão quando não tinha a posse de bola.
E foi dessa forma que os comandados de Bruno Lage ganharam nos Açores (2 a 0, conforme já relatado), em Guimarães (1 a 0), no Dragão (2 a 1, de virada), no Alvalade (4 a 2), em Moreira de Cónegos (4 a 0), em Braga (4 a 1, de virada) e na Vila do Conde (3 a 2). Foi dessa forma que eles buscaram outras reviravoltas, contra Feirense (4 a 1, em Santa Maria da Feira) e Portimonense (5 a 1, na Luz). Foi assim que golearam o Nacional por 10 a 0 (!!!!!), na Luz. Foi dessa forma que suaram para superar o Tondela pela contagem mínima. Foi dessa forma que chegaram aos 103 gols e igualaram o recorde do lendário plantel de Eusébio, Mário Coluna, José Augusto, Torres, Germano, do técnico Lajos Czeizler e cia., da temporada 1963/1964. Foi dessa forma que acumularam 18 vitórias e um empate nos últimos 19 jogos do campeonato. Foi dessa forma que alcançaram 87 pontos na classificação, ficando atrás somente dos 88 pontos do Benfica de 2015/2016 - que, por ironia do destino ou não, era treinado por Rui Vitória. Foi dessa forma que o Maior de Portugal conquistou o seu 37º título nacional neste 18 de maio, ao superar o Santa Clara por 4 a 1. Mais do que vencer, quem veste a águia ao peito queria manter uma identidade a qual condiz com a grandeza da agremiação, a de vencer jogando bonito, e não a filosofia anterior, a do resultado pelo resultado.
Como acontece com qualquer equipe, também houve momentos de instabilidade: as eliminações na Taça da Liga (3 a 1 para o Porto, na fase semifinal), Taça de Portugal (2 a 2 com o Sporting no placar agregado e derrota no gol qualificado, também na semifinal) e Uefa Europa League (4 a 4 com o Eintracht Frankfurt no placar agregado e derrota no gol qualificado, nas quartas de final), o revés para o Dínamo Zagreb (1 a 0, na Croácia) na primeira mão das oitavas de final da UEL e o empate com o Belenenses SAD (2 a 2, na Luz, quase custando o título) na I Liga. A partir desses tropeços, o elenco juntou os cacos e se reconstruiu para obter a tão almejada Reconquista.
Odysseas, Grimaldo, Ferro, Florentino, João Félix, Gedson, Gabriel, Samaris, Pizzi e Rafa Silva jogaram em alto nível; André Almeida superou as críticas e comprovou o seu valor para o grupo; Jonas deixou sua marca quando foi acionado; Seferovic se sagrou artilheiro da competição com 23 bolas na rede; Pizzi liderou o quesito passes para gol com 18 assistências; os Encarnados tiveram o melhor ataque do certame com os seus incontestáveis 103 gols. Pelo que as estatísticas apontam, até parece ter sido fácil. Mas não se enganem. Quem vivenciou cada partida sabe que foi muito difícil. Contaremos às próximas gerações a história do Benfica que tratou todos os desafios como uma final, encarou com sangue nos olhos os oponentes, superou com louvor as adversidades típicas dos 90 minutos, jogou bonito e reconquistou o país. Viva o Clube do Povo, 37 vezes campeão de Portugal!
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