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Sobre o hooliganismo passivo.




Muito se tem falado no ambiente quando jogamos em nossa casa. E se olharmos aos últimos meses, em contraste com o que nos tem sido oferecido em campo pela equipa, temos retribuído com um pobre espectáculo nas bancadas que nos faz corar muitas vezes de vergonha.


As causa são muitas e felizmente parece que deixou de ser um tabu falar e discutir isso mesmo. E a mesma tem sido feita e aqui no Benfica Independente assumimos esse compromisso (que julgo que tem vindo a ser bem cumprido - já agora ler isto, isto e isto).

No entanto, e concordando que o ambiente pode e deve ser melhorado, em quase toda a argumentação lida noto uma comparação com o "antigamente".

"Antigamente é que era!"


Seja este "antigamente" recente, seja aquele daquelas velhas noites europeias na antiga Catedral.

Como que uma nostalgia que nos aconchega. E esta afinal de contas será sempre familiar e perfeita vista à distância de 2 ou 3 décadas. Mas talvez o mais importante: todos sabemos que essa nostalgia já não pode ser recriada, caindo nós muitas vezes no erro de "efabular" certas recordações. Até porque não há o risco de as mesmas voltarem para nos atormentar.

O que é normal e inerente ao ser humano.


Como já aqui escrevi, esta questão está na ordem do dia e foi inclusive falada no episódio #3 do Brinco do Baptista, um podcast com a chancela deste portal.

Lá entre muitas outras coisas (desta vez foram "só" 110 minutos), esta questão foi debatida e querendo trazer uma outra perspectiva e confrontar o tal passado perfeito que todos falam (e também para enriquecer o debate), resolvi pesquisar e trazer um excerto de uma crónica de MEC (Miguel Esteves Cardoso), um assumido benfiquista que confessa não perceber nada de futebol (no entanto, autor em 2012 de umas das melhores entrevistas feitas a Eusébio).

MEC dispensa muitas apresentações, mas para quem não o conhece, digamos que é autor das mais genuínas e originais crónicas que testemunham as transformações ocorridas em Portugal nestes últimos 30 a 40 anos.


O conjunto de crónicas escritas nas décadas 80 e 90 para os mais variados orgãos de comunicação social (com especial ênfase no semanário Independente que ajudou a fundar), foi editado pela primeira vez em 1999 pela Assírio & Alvim, tendo por título "As minhas aventuras na República Portuguesa".

Em 1988, MEC foi convidado pelo Benfica a estar presente na final de Estugarda, tendo por adversário o PSV, no então designado Neckerstadion.


A crónica é extensa, dividida em três desafios e abarca a viagem e a estadia e caso não tenham acesso ao livro, poderão clicar nos dois últimos links anteriores e ler a mesma na totalidade (aconselho porque acho que está genial).


Deixarei aqui apenas transcrito a parte do terceiro desafio, ou seja do jogo, que contém as partes lidas no episódio referido.




"A aventura do Benfica"

"Não percebo nada de futebol, nem gosto, mas sei porque é que o Benfica perdeu. Não vou contar é já. O Benfica, que é o melhor clube do mundo, convidou-me para ir a Estugarda ver a final da Taça dos Campeões Europeus. Fui. Estudei a situação. Cheguei a conclusões. A primeira conclusão a que cheguei é que houve não só um, mas vários desafios envolvendo benfiquistas. Vendo bem, o desafio propriamente dito, entre o Benfica e o PSV Eindhoven, ainda foi o menos interessante. Houve outros, anteriores e envolventes, que foram mais importantes e que contribuíram mais para a derrota do Benfica no Neckarstadion.

(...)


Desafio n.º 3. Benfica vs PSV Eindhoven.

Como convidado do Benfica já me via todo afiambrado na tribuna de imprensa do estádio de Neckar, armado em director de jornal, ao lado das figuras lendárias do jornalismo desportivo, como Vítor Santos, Alfredo Farinha e Leonor Pinhão. Estava, aliás, a contar com eles para me indicarem os jogadores, explicarem-me quando é que era off side, golo, et cetera. Queria escrever uma crónica com algum fundo técnico, que falasse com à-vontade da «cultura-táctica», do «plantel» e do «problema do meio campo». Queria brilhar.

Percebi logo que o meu bilhete não era dos bons. Com o coração a afundar-se-me no peito, fui andando para cada vez mais longe da tribuna da imprensa, até calhar praticamente em cima duma baliza, rodeado pelo mais puro maralhal. Estava outra vez cercado de benfiquistas. Só que desta vez já estava com saudades deles. 

Entreguei-me ao público. Aprendi com ele tudo o que sei. A palavra operante, em todos os comentários, é «lá». É um bocado como a música. É «Vai lá!» para aqui, «Olha lá» para ali, é «Vamos embora lá prà frente» e «Anda lá com essa merda». Só que os jogadores nunca vão lá como os adeptos lhes pedem. Fazem-nos sofrer. Se calhar. há uma boa razão táctica para não ir lá. De qualquer modo, preferem andar para trás diante de um adversário que tenha a bola, deixando-o avançar muito para além do sofrimento da massa associativa, a ir lá

Os benfiquistas são hooligans passivos. São hooligans inteligentes que não levantam o rabo do assento. Ao contrário dos outros hooligans, praticam a violência sobre si próprios. Torturam-se. Massacram-se. Discutem entre si. 

Antes de acabar o jogo, já estão a gritar «Derrota». Na minha bancada só havia um optimista. Gritava: «Vocês são benfiquistas do tijolo. O PSV está a jogar muito bem, são muito inteligentes, isto é que é futebol... mas se fosse o Benfica, não estava a jogar nada!» Na altura dos penalties, já nos tínhamos chacinado a nós mesmos, já só tínhamos uma boca e um braço e acolhemos a chegada do Elzo com o comentário: «Nunca vi o Elzo marcar um penalty». Quando foi o Dito, fez-se logo a rima proverbial: «Ai o Dito, está tudo f...» Quando foi o Hadjry, opinou-se: «Ai o marroquino... vai ser a realidade!» 

Torcer tem outro sentido entre os Benfiquistas. Torcem-se a si mesmos. A festa é sofrer. Ao fim de 15 minutos no meio deles, eu próprio já sofria. Ainda sofro. Ninguém se diverte. Está-se ali ou para o grande castigo ou para o grande milagre. Enquanto os holandeses puxam constantemente pela equipa, nós exigimos que seja a equipa que puxe por nós. 

Cada benfiquista, graças à sua posição privilegiada no estádio, ao seu ângulo de visão e experiência táctica de muitos anos a ver o «Domingo Desportivo», é um treinador e um jogador. «Mete o pé!», gritam. «Vá lá um!», ordenam. «Atira de qualquer maneira!», sugerem. 

A equipa, por sua vez, funciona mais como uma pequena claque de onze, cuja missão é dar ânimo ao público. 



Aprendi alguns conceitos futebolísticos importantes. O insight principal, emitido de três em três minutos, a várias vozes, por cerca de 40 mil benfiquistas, era que fazia falta «o Diamante». Não consegui apurar o que quer dizer. Penso que deve ser parecido com o drive no golfe ou com o finish no ténis: alguma capacidade de dureza e penetração, com um grau elevado na escala de Mohs. 


Depois, compreendi outras coisas essenciais: que o problema do futebol reside no meio campo, que em 61-62 isto era outra coisa, que os livres dos adversários são sempre «perigosos», que o ritmo de jogo é essencial, que o Toni não tem culpa, que o Benfica não tem jogadores, que nunca está ninguém na ponta e que o futebol que os holandeses jogam «é o futebol deles».  E pronto. Vamos ao jogo em si. 

jogo em si

O jogo em si pareceu-me monótono, Nem os do Benfica nem os do PSV jogaram muito bem. Foi pena o Benfica não ter ganho a Taça. Mas porque é que o Benfica perdeu? 

Conclusões

O Benfica perdeu porque: 1) o árbitro era italiano e o Benfica nunca ganhou nenhuma final quando o árbitro era italiano; 2) o Alfredo Farinha assistiu ao jogo. Já é a quarta final do Benfica a que o grande jornalista assiste e nunca viu o Benfica ganhar." 



Como vêem talvez o mal seja cultural e já venha de trás. Não há mal nenhum em reconhecer isso. Isso não iliba que os ambientes sejam ultimamente uma lástima.

Cabe-nos a nós alterar o padrão aqui retratado.


Viva o Benfica!

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