O futebol vive-se muito para lá do relvado. Não estou a pensar na vertente geopolítica, associativa ou na importância de respeitar os direitos humanos, mas apenas na parte mais verdadeira e pura de um jogo de bola: a amizade. É simples, é mesmo assim tão simples.
Eu cresci a gostar do Benfica pela rádio e pelos jornais e só mais tarde chegaram as idas ao estádio. O meu amor ao clube nasceu só meu, numa espécie de segredo da família, mas foi nas idas à bola que descobri que tudo é melhor quando é partilhado.
A partir de certa altura ir à bola era chegar pelo menos duas horas antes do jogo e sair quando ajudássemos o Manelito, o Tiago e o António a prender a roulotte na carrinha para arrancarem para o descanso merecido. Naqueles tempos não havia hora de fim. Não queríamos que tivesse fim, mesmo sabendo que no máximo quinze dias depois lá estaríamos. Custava abandonar aquela casa e fechar a noite, e sabia sempre tão bem voltar ali.
Lembro-me de quando um amigo me disse que não tinha uma roulotte preferida, ia bebendo aqui e ali. Emudeci. Bola é partilha. É ter um sítio onde se sabe que somos bem recebidos, um local de que se tem saudades, é ter uma cara de sorriso aberto que nos pergunta: Olá, campeão! São 10? E um grupo faz-se da sua roulotte. É, talvez, o único momento onde a propriedade privada não é um roubo. A roulotte Manelito era nossa. Aquela roulotte são as nossas memórias, as nossas pessoas, a nossa história.
Ao longo dos últimos anos, a amizade foi crescendo. Mesmo com o caos habitual por causa das imperiais que acabavam antes do intervalo, havia sempre tempo para trocar umas palavras quando se chegava e muitas mais quando ficávamos por ali após o começo do jogo. Tornou-se quase uma superstição, daquelas que quem vai à bola sabe o que representam num grupo.
Foi em frente ao Manelito que queimámos o panamá do Fred, quando deixou de nos dar sorte; que fizemos mil promessas futebolísticas; que matámos saudades; que soubemos de casamentos e de fins de relação; que chorámos e rimos muito; que nos aproximámos daqueles que eram apenas companheiros de bancada e roulotte; que sorrimos de tochas na mão; que cantámos o hino até ficar sem voz.
O Manelito faz parte do meu redpass e não estou preparado para o perder. Hoje estou desolado. Estou muito triste. Mesmo. Esta dor é da família e dos amigos, porém também a sinto um pouco minha. Com o falecimento do Manelito morre também uma forma de viver o futebol. E envergonhado, peço-te desculpa, Manelito, por nunca ter comido um courato, mas viver aquelas tardes e noites já me enchia a barriga de benfiquismo.
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